Paulo Batista Gomes

Paulo Batista Gomes

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

BRICS: Uma Aliança que se Consolida, por Luiz Inácio Lula da Silva

BRICS: Uma Aliança que se Consolida, por Luiz Inácio Lula da Silva

Depois de sediar com eficiência e hospitalidade aquele que já é considerado um dos melhores mundiais de futebol de todos os tempos, o Brasil foi anfitrião de outro importante encontro internacional, a VI Cúpula de Chefes de Estado dos BRICS, realizada em Fortaleza e Brasília de 14 a 16 de julho.

O termo BRICS foi cunhado para designar um grupo de países emergentes — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — que tiveram acelerado desenvolvimento a partir da virada do século e se tornaram um dos motores do próprio crescimento global, sobretudo depois de 2008, com a eclosão da crise financeira norte-americana e europeia.

Ao lançar o acrônimo BRICS, o economista Jim O’Neill queria chamar a atenção para as oportunidades de negócios abertas aos investidores globais nessas cinco grandes nações. Afinal, elas contam com quase 40% da população mundial, conseguiram criar fortes mercados internos e plataformas exportadoras e em menos de vinte anos, segundo o FMI, saltaram de 5,6% para 21,3% do PIB mundial.

Essas oportunidades continuam a existir e se tornaram ainda maiores devido aos inúmeros projetos de modernização e expansão da infraestrutura e do aparato produtivo que os BRICS já estão executando ou vão executar nos próximos anos. (Só no Brasil serão investidos até 2018 mais de 400 bilhões de dólares em usinas hidrelétricas, portos, aeroportos, refinarias de petróleo, ferrovias, rodovias, gasodutos etc.). Sem falar no potencial de expansão de seus mercados internos, graças à incorporação ao mundo do trabalho e do consumo de milhões de pobres e excluídos. Tudo isso leva os analistas — apesar da recuperação muito lenta dos países desenvolvidos, que tem impacto conjuntural negativo em todas as economias — a ressaltarem a solidez e as perspectivas favoráveis a médio e longo prazo de todos os países que compõem os BRICS.

As nações do grupo, no entanto, foram muito além da atração de investimentos. Lembro- me de que nos reunimos pela primeira vez em junho de 2009, na Rússia — os Presidentes Medvedev, Hu Jintao, Singh e eu próprio — e decidimos transformar o que não passava de uma sigla em uma efetiva articulação econômica, geopolítica e estratégica para favorecer o crescimento de nossos países e de seus parceiros regionais e, ao mesmo tempo, impulsionar uma nova agenda de desenvolvimento multilateral e de reforma da governança global.

Nossos países já estavam empenhados na integração africana, latino-americana e asiática como pressuposto de um mundo multipolar. Além disso, tiveram papel-chave na criação do G-20, o primeiro foro multilateral relevante a dar o devido peso aos países do sul. E propunham a reforma da velha ordem internacional estabelecida em Breton Woods, em 1944, cuja inadequação às realidades do mundo contemporâneo constitui, na prática, um entrave ao progresso compartilhado do planeta. (Basta dizer que, em 1944, a China estava à beira de uma guerra civil, a Índia nem sequer existia como país independente e quase todo o continente africano era constituído de colônias europeias).

Os defensores do status quo internacional, refratários a qualquer iniciativa que busque tornar mais justa a ordem econômica e política mundial, tentaram desqualificar os BRICS alegando que não se tratava de uma aliança crível, dado o seu caráter heterógeno e “artificial “, que seus membros estão geograficamente distantes uns dos outros, além de possuírem interesses nacionais contraditórios, e que, por isso mesmo, nada de concreto e significativo poderia surgir do grupo.

A cúpula de Fortaleza e Brasília — que teve como tema o crescimento com inclusão social e sustentabilidade — acaba de desmentir categoricamente tais prognósticos. Ela demonstrou que os países emergentes superaram as posturas meramente reivindicatórias do passado e assumiram de vez um papel proativo no cenário internacional. Nela foram tomadas decisões não apenas concretas, mas claramente inovadoras, que vão desde as facilidades de comércio até o combate aos crimes cibernéticos. Mas as principais medidas foram a criação de um banco de desenvolvimento com capital inicial de 50 bilhões de dólares para financiar projetos de infraestrutura e plantas industriais sustentáveis e um fundo de reservas de 100 bilhões de dólares para ajudar os países membros em eventuais crises de liquidez. Iniciativas que reforçam a já sólida situação financeira dos integrantes do grupo, e facilitam a sua cooperação em outras áreas, como a energética e a cientifico- tecnológica.

Essa atitude inovadora estende-se também ao modelo democrático de governança que será adotado pelos dois organismos, nos quais os cinco países terão idêntico peso, com presidências rotativas e deliberações obrigatoriamente por consenso.

Assim como a África do Sul havia feito com seus vizinhos na Cúpula de Durban, a Presidente Dilma Rousseff, cuja determinação e capacidade negociadora foram fundamentais para os acordos conseguidos, convidou para o encontro de Fortaleza todos os chefes de Estado Sul-americanos, deixando claro que a atuação do Brasil nos BRICS se dá a partir do compromisso estratégico que o país tem com a integração regional. Além dos dirigentes políticos, o evento contou também com a participação de centenas de lideres empresariais, sociais e intelectuais dos nossos países.

Não tenho dúvidas de que as decisões tomadas pelos BRICS, além de úteis aos países membros e seus parceiros, terão uma incidência benéfica na própria governança global. Não são medidas reativas, mas criativas; não são contra ninguém, mas a favor do crescimento global e de uma comunidade internacional cada vez mais inclusiva e equilibrada.

(Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil, que agora trabalha em iniciativas globais com Instituto Lula e pode ser seguido emfacebook.com/lula)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

América Latina: Dois Oceanos, Uma Voz, por Luiz Inácio Lula da Silva e Ricardo Lagos

América Latina: Dois Oceanos, Uma Voz, por Luiz Inácio Lula da Silva e Ricardo Lagos


São tempos de convergência na América Latina e, especialmente, na América do Sul. Alguém, por miopia, capaz de enxergar apenas as tendências ideológicas contrapostas na região, pode até questionar esta afirmação. Mas existem determinados fatos que mostram como vai se formando, com o passar dos anos, uma segunda pele de mais cooperação sob aquela mais visível, anunciando outra identidade latino-americana para o século XXI.

Durante a primeira semana de abril, uma delegação da CELAC-Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe, integrada por Cuba, Costa Rica e Equador, teve importantes reuniões em Pequim com o intuito de montar uma agenda, dar conteúdo e projeção ao recém-criado Fórum CELAC-China, que fará sua primeira reunião oficial em julho, no Brasil, logo após o encontro dos BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Quase ao mesmo tempo, aconteceu em Quito o lançamento da Escola Sul-americana de Defesa, com a participação de delegados da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela e do próprio Equador, com o objetivo de desenvolver uma visão compartilhada de defesa regional, sem ingerências ou hegemonias externas, em um processo de institucionalização da União das Nações Sul-americanas (UNASUL).

Apesar desses fatos, pessimistas insistem em negar a existência real da América Latina ou consideram ser um “disparate” o incremento dos vínculos entre países do Atlântico e do Pacífico. Atmosfera que leva mais de um jornalista a fazer perguntas como: “Junto com o México, o Peru e a Colômbia, o Chile faz parte da Aliança do Pacífico. Alguns analistas afirmam que o bloco, considerado liberal, surgiu para se contrapor politicamente ao MERCOSUL. É verdade?”.

Certamente, não é verdade. Mas é preciso ratificá-lo com uma visão estratégica clara e contundente. A América Latina está voltada tanto para o Atlântico quanto para o Pacífico, o que é um privilégio no reordenamento mundial que emerge no século XXI.

E, no meio, se encontra esta nossa geografia convocada a ser um todo articulado e coordenado, para aproveitar as diversas oportunidades que se abrem aos nossos países de um lado e de outro. Por uma parte, está a história já secular do Atlântico como polo econômico que nos ligou à África, Europa e ao Mediterrâneo. Por outra, está o Pacífico, onde estão as potências econômicas do Japão, da China, dos membros da ASEAN- Associação de Nações do Sudeste Asiático, bem como da Austrália e da Nova Zelândia.

A América Latina tem uma oportunidade histórica ímpar: estar no centro deste cenário que vai construindo novas correntes entre o Atlântico e o Pacífico. Mas este desafio contemporâneo nos chama a definir — agora, e não mais tarde — uma só voz para falar com ambos os oceanos.

Eis um desafio que nos faz reencontrar uma palavra tantas vezes dita em nossa trajetória de nações independentes: integração. A integração capaz de incorporar e transcender as múltiplas experiências regionais e sub-regionais que acabaram não concretizando todos os objetivos pretendidos. Diferentes atores sociais — empresários, sindicalistas, artistas, estudantes, turistas e outros — foram muito mais rápidos que os governos para se integrarem com seus vizinhos latino-americanos.

Chile, país do Pacífico, é o maior investidor latino-americano no Brasil, país do Atlântico. São mais de 25 bilhões de dólares investidos e dezenas de milhares  de empregos gerados em vários estados brasileiros por empreendimentos nas áreas de celulose, eletricidade, tecnologia da informação, química e metais. E, por certo, também se acrescentam as companhias colombianas, peruanas e mexicanas que produzem cada vez mais no Brasil para um mercado interno de 200 milhões de pessoas  com  grande horizonte de expansão. Da mesma forma, Brasil e Argentina, além dos investimentos recíprocos, demonstram o seu dinamismo em  inúmeros projetos industriais e de infraestrutura nos mais diversos países  da América Latina, gerando igualmente uma enorme quantidade de empregos locais.  Até 2006, apenas duas empresas brasileiras atuavam na Colômbia; hoje, são quarenta. E o mesmo vale para os demais países do Pacífico. No Chile, por exemplo, atuam cerca de 70 empresas brasileiras.  No Peru, 44. Sem falar na crescente presença dos países Sul-Americanos na América Central e no Caribe, onde investem em novas plantas industriais e financiam a construção de portos, aeroportos, estradas, metrôs.

A Aliança do Pacífico, que se propõe a ser um acordo econômico e de modernização de relações — e não outra coisa — terá realmente peso e projeção se atuar em uma ligação estreita com o Brasil, a Argentina e as demais nações de vocação atlântica. Do mesmo modo, o peso dos países atlânticos poderá ser ainda mais relevante se eles tiverem uma atuação internacional vinculada aos do Pacífico.

É aí que deve ser fortemente valorizado o papel da UNASUL na integração. Pela sua pluralidade e pela autoridade que já adquiriu, ela pode ser decisiva no enfrentamento de nossas tarefas pendentes, que não são poucas: infraestrutura em malha rodoviária e pontes; integração energética em uma região rica em hidrocarbonetos, recursos hídricos e gás; melhor fluxo de mercadorias por nossas alfândegas, para dinamizar um comércio intra-regional que saltou de US$ 49 bilhões em 2002 para US$ 189 bilhões em 2013, mas ainda não chega a 20% do nosso fluxo total; novas políticas para responder ao fenômeno de migrações e trânsito cada vez maior de cidadãos que estão demandando efetiva liberdade de circulação. E também, como foi dito em Quito, uma política de defesa comum que, dentre outras questões, desenhe estratégias para a defesa dos recursos naturais e consolide toda a América Latina como Zona de Paz.

Além disso, a CELAC deve ser o espaço para debater os grandes temas da política e da economia mundial. Por exemplo, a entidade regional poderia se reunir dois meses antes do G-20, e os países da região poderiam pedir aos três que fazem parte desse fórum global — Argentina, Brasil e México — que sejam portadores de nossas posições sobre mudanças climáticas, migrações, protecionismo, narcotráfico e drogas, nova arquitetura financeira internacional e mecanismos de segurança e paz, entre outros temas debatidos nas Nações Unidas.

Será que os países latino-americanos podem chegar a um acordo para atuarem assim? Vemos sinais e gestos auspiciosos nesse rumo. Como se afirmou recentemente em um seminário do Conselho de Relações Internacionais para América Latina (RIAL), “a integração bem sucedida é aquela onde prevalecem os elementos de cooperação, buscando convergências possíveis, sem a pretensão de eliminar as diferenças, mas fazendo-as gerenciáveis”.

Não é uma informação menos importante que exista um diálogo conjunto com a China através da CELAC, da mesma forma que seguramente existirá com os Estados Unidos e com a União Europeia. Também não é menos importante que a agenda sul-americana esteja sendo reativada com realismo e visão de futuro. A chave em tudo isto é atuar — para dentro e para fora do continente — pensando em nossos cidadãos de hoje que almejam democracias não apenas legais, onde o voto seja o grande instrumento, mas também democracias legítimas, realmente participativas, onde a política saiba interpretar os sinais dos tempos e agir em consequência.

(Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil, que agora trabalha em iniciativas globais com Instituto Lula e pode ser seguido emfacebook.com/lula. Ricardo Lagos é ex-presidente do Chile.)

sexta-feira, 4 de abril de 2014

A SAÚDE DAS ECONOMIAS EMERGENTES, POR LUIZ INÁCIO DA SILVA.

A saúde das economias emergentes, por Luiz Inácio Lula da Silva

                Nos últimos meses têm surgido na mídia internacional alguns juízos apressados e superficiais sobre um inevitável declínio econômico dos chamados países emergentes e a sua suposta “fragilidade”.

                Os que pensam assim não compreendem o alcance das transformações que o mundo viveu nas últimas décadas e o verdadeiro significado do salto histórico que deram países como a China, a Índia, o Brasil, a Turquia e a África do Sul, entre vários outros. Não percebem que a economia desses países, além de crescer de modo extraordinário, passou também por uma mudança de qualidade. Tornou-se  mais diversificada, eficiente e profissional. E muito mais rigorosa e prudente do ponto de vista macroeconômico, sobretudo no que se refere às políticas fiscal e monetária. Não levam em conta que os países emergentes, com tremendo esforço e determinação,  reduziram sistematicamente  a sua vulnerabilidade interna e externa e agora estão muito mais aptos a enfrentar as oscilações econômicas globais. Por isso, quem os avalia por critérios superados, de décadas atrás – os estereótipos sobre as eternas mazelas do “terceiro mundo”– acaba subestimando a sua solidez e o seu potencial de crescimento.

        Até pelos erros de avaliação cometidos na véspera da crise de 2008, quando grandes empresas norte- americanas e europeias à beira da falência eram consideradas por muitos analistas como modelo de solidez e competência, penso que seria recomendável maior objetividade nos diagnósticos e, principalmente, nos prognósticos.

Um dos principais ensinamentos a tirar da crise, que não surgiu nas  nações em desenvolvimento, mas nos países mais ricos do planeta, é que as opiniões sobre as economias e o destino dos países devem evitar tanto o elogio inconsistente quanto o alarmismo sem fundamento. A busca equilibrada da verdade é sempre o melhor caminho. E isso supõe examinar de perto, meticulosamente, sem preconceitos nem velhos clichês, a economia real de cada país.

        Os países emergentes, obviamente, não estão nem nunca estiveram isentos de desafios. Integrados ao mercado mundial, tem que lidar com as consequências de um maior ou menor dinamismo da economia global. Mas hoje não dependem exclusivamente das exportações que, apesar da crise, mantiveram um volume muito expressivo. Os países emergentes criaram fortes mercados internos, ainda com enorme horizonte de expansão.  A retomada dos Estados Unidos e da Europa não torna essas economias menos atrativas para o investimento estrangeiro, que continua a chegar em grande quantidade. As economias desenvolvidas precisam, mais do que nunca, de mercados ainda elásticos para a sua produção, e esses mercados estão principalmente na Ásia, na América Latina e na África. Sem falar que o crescimento norte-americano e europeu tende a favorecer o conjunto do comércio mundial.

        A queda no ritmo de crescimento dos emergentes costuma ser exemplificada com a situação da China, que chegou a crescer 14 por cento ao ano e hoje cresce em torno de 7%.  É evidente que, com a desaceleração dos países ricos, a China não poderia manter a mesma velocidade de expansão. O que se esquece, porém, é que 10 anos atrás o PIB da China era de cerca de 1.6 trilhão de dólares e hoje é de quase 9 trilhões de dólares. A taxa de crescimento é menor, mas sobre uma base muitíssimo maior. Além disso, deixou de ser um país quase que exclusivamente exportador, para desenvolver também o seu mercado interno, o que demanda novas importações. Por outro lado, graças à imensa poupança e acúmulo de reservas, a China passou a ser uma importante fonte de investimentos externos na Ásia, na África e na América Latina.

        Embora sejam economias menores do que a China, os outros emergentes, com diferentes ritmos de crescimento – mas sempre crescendo – também apresentam boas perspectivas.

        É o caso do Brasil, que está sabendo ajustar-se ao novo cenário internacional e tem condições concretas não só de manter as suas conquistas econômicas e sociais, mas de continuar avançando.

        Os dados da economia brasileira falam por si. No último decênio, o Brasil conseguiu tornar-se em vários aspectos um novo país. O PIB, que em 2003 era de 550 bilhões de dólares, hoje  supera os 2.1 trilhões. Somos hoje a sétima economia do mundo. O comércio externo passou de 119 bilhões de dólares anuais em 2003 para 480 bilhões em 2013. O país tornou-se um dos seis maiores destinos de investimento externo direto, recebendo 63 bilhões de dólares só no ano passado, de acordo com as Nações Unidas. É grande produtor de automóveis, máquinas agrícolas, celulose, alumínio, aviões; e líder mundial em carnes, soja, café, açúcar, laranja e etanol.

        Baixamos a inflação de 12.5 por cento em 2002 para 5.9 por cento em 2013. Há dez anos consecutivos ela permanece dentro dos limites estabelecidos pela autoridade monetária, mesmo com a aceleração do crescimento. Reduzimos a divida pública líquida praticamente à metade; de 60.4 por cento do PIB para 33.8 por cento. Desde 2008, o país fez superávit primário médio anual de 2.5 por cento, o melhor desempenho entre as grandes economias. E a Presidenta Dilma Rousseff anunciou o esforço fiscal necessário para manter a trajetória de redução da divida em 2014.

        Com 376 bilhões de dólares em reservas, dez vezes mais do que em 2002. Diferentemente do passado, hoje o Brasil pode lidar com flutuações externas ajustando o câmbio sem turbulências nem artifícios.

        Esses resultados poderiam ter sido ainda melhores, não fossem os impactos da crise sobre o crédito, o câmbio e o comércio global. A recuperação dos Estados Unidos é uma excelente notícia, mas neste momento a economia mundial reflete a retirada dos estímulos do FED. E, mesmo nessa conjuntura adversa, o Brasil cresceu 2.3 por cento no ano passado, um dos melhores resultados dentre os países do G-20 que já divulgaram os indicadores de 2013.

        O mais notável é que, desde 2008, enquanto o mundo, segundo a OIT, destruiu 62 milhões de empregos, o Brasil criou 10.5 milhões de novos postos de trabalho. A taxa de desemprego é a menor da nossa história. Não vejo indicador mais robusto da saúde de uma economia.

        Há uma década o país trabalha ativamente para ampliar e modernizar a sua infraestrutura. Aumentamos a capacidade energética de 80 mil MW para 122 mil MW e estamos construindo três hidrelétricas de grande porte. Além disso, o governo lançou um vasto programa de concessões de portos, aeroportos, rodovias, hidrovias e distribuição e geração de energia no valor de mais de 170 bilhões de dólares.

        Recentemente estive com investidores globais, em Nova Iorque, mostrando como o Brasil se prepara para dar passos ainda maiores na nova etapa da economia mundial. Pude comprovar que eles  tem uma visão ao mesmo tempo realista e positiva do país e do seu potencial de crescimento. Seguirão investindo no Brasil e, com certeza, terão bons resultados, crescendo junto com o nosso povo.

O novo papel que os países emergentes assumiram na economia global não é algo efêmero, transitório. Eles vieram para ficar. A sua força evitou que o mundo mergulhasse, a partir de 2008, numa recessão generalizada. E não será menos importante para que a economia global volte a ter um ciclo de crescimento sustentado.

(Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil, que agora trabalha em iniciativas globais com Instituto Lula e pode ser seguido emfacebook.com/lula).

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Não vamos nos esquecer do Haiti, por Luiz Inácio Lula da Silva

Não vamos nos esquecer do Haiti, por Luiz Inácio Lula da Silva

Em 2014, completam-se dez anos de presença da Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti e quatro anos do terremoto que devastou e agravou a frágil situação deste que é o país mais pobre da América Latina.

Grandes crises institucionais e catástrofes naturais levam países às manchetes em todo o mundo e despertam durante algum tempo a atenção da imprensa internacional e dos governantes. Mas depois, sobretudo se o país vitimado é pobre e periférico, sem peso no jogo geopolítico global, os holofotes se apagam, as notícias se tornam cada vez mais raras, o clamor de solidariedade arrefece e boa parte das promessas de apoio são esquecidas. Até porque a reconstrução das áreas atingidas e a solução real dos problemas de suas populações não acontece, obviamente, na mesma velocidade com que as notícias são difundidas na internet e na televisão. Exige uma atuação paciente e continuada, com inevitáveis altos e baixos, ao longo de anos, que vá muito além  do socorro humanitário. E isso supõe um forte compromisso ético e político  dos países envolvidos.

Vale a pena lembrar que, no primeiro semestre de 2004, o Haiti sofreu uma gravíssima crise política que resultou na queda do Presidente Jean-Bertrand Aristide e na disputa pelo poder entre diversos grupos armados, sacrificando brutalmente  a população civil. A violência e os atentados aos direitos humanos se generalizaram. Gangues de delinquentes passaram a agir livremente em Porto-Príncipe, apoderando-se inclusive de prédios e órgãos públicos. Alguns dos maiores bairros da capital, como Bel-Air e Cité Soleil, foram completamente dominados por facções criminosas. Na prática, o Estado democrático entrou em colapso, incapaz de garantir condições mínimas de segurança e estabilidade para que o país continuasse funcionando.

A pedido do governo haitiano, e com base em resolução do Conselho de Segurança, a ONU decidiu enviar ao país uma Missão de Paz e Estabilização – a MINUSTAH. Um general brasileiro comanda a componente militar da missão, que conta com soldados de dezenas de países, e é integrada majoritariamente por tropas de nações sul-americanas.

O Brasil e seus vizinhos aceitaram a convocação  da ONU por um imperativo de solidariedade. Não podíamos ficar indiferentes à crise político-institucional e ao drama humano do Haiti.  E o fizemos convictos de que a tarefa da MINUSTAH não se limitava à segurança, mas abrangia também o fortalecimento da democracia, a afirmação da soberania política do povo do Haiti e o apoio ao desenvolvimento sócio- econômico do país. Daí a atitude respeitosa e não truculenta – de verdadeira parceria com a população local – que tornou-se sua marca registrada.

Hoje a situação de segurança se transformou profundamente: os riscos de guerra civil foram neutralizados, a ordem pública restabelecida e os bandos de delinquentes derrotados. O país foi pacificado e o Estado reassumiu o controle de todo o território nacional. Além disso, a MINUSTAH tem contribuído para equipar e treinar uma força haitiana de segurança.

As instituições democráticas voltaram a funcionar e estão se consolidando. Já em 2006, foram realizadas eleições gerais no Haiti, com a participação de todos os setores políticos e ideológicos interessados. Sem interferir  na disputa eleitoral, a MINUSTAH garantiu a tranquilidade do pleito e que prevalecesse a vontade popular. O presidente eleito,  René Préval, apesar de todas as dificuldades, cumpriu integralmente  o seu mandato e, em 2011, transmitiu o cargo ao seu successor, Michel Martelly, também escolhido pela população.

Na esfera humanitária e social, conseguiu-se algumas melhorias significativas, ainda que persistam enormes desafios e que o terremoto de 2010, com sua onda de destruições, tenha comprometido parte do esforço anterior, gerando novas carências. Apesar de tudo, a população desabrigada, segundo relatório da ONU de 2013, caiu de 1,5 milhões de pessoas para 172 mil. Três em cada quatro crianças já frequentam regularmente a escola fundamental, frente a menos da metade em 2006. A insegurança alimentar foi drasticamente reduzida. O flagelo do cólera está sendo enfrentado.

Nas três vezes em que visitei o Haiti, pude testemunhar a capacidade de resistência e a dignidade do seu povo. Em 2004, a seleção brasileira de futebol esteve no país para um jogo amistoso com a seleção local em prol do desarmamento. Até hoje me comovo ao lembrar o carinho com que a população haitiana recebeu os nossos atletas.

Além de sua participação na MINUSTAH, para a qual  contribui com o maior contingente de soldados, o Brasil tem colaborado intensamente com o povo do Haiti na àrea social. Com recursos próprios ou em parceria com outros países, implementou uma série de programas que vão desde campanhas nacionais de vacinação até o apoio direto à pequena e média empresas e à agricultura familiar, passando pela alimentação escolar e a formação profissional da juventude.

Há três iniciativas brasileiras, entre outras, que me entusiasmam particularmente. Uma são os três hospitais comunitários de referência, construídos junto com Cuba e o próprio governo do Haiti, para atender às camadas mais pobres da população. Outra é um projeto inovador de reciclagem de resíduos sólidos, elaborado e executado pelo grupo IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), que contribuiu ao mesmo tempo para a limpeza urbana, a geração de energia e a criação de empregos. Essa inciativa foi, inclusive, premiada pela ONU. E a terceira é o projeto de construção de uma usina hidrelétrica no Rio Artibonite, que certamente representará um salto histórico na infraestrutura do país, ampliando o acesso da população à eletricidade, favorecendo a agricultura e a indústria, e permitindo ao Haiti reduzir a sua dependência da importação de petróleo. Trata-se de um empreendimento para o qual o Brasil já elaborou os projetos de engenharia e doou 40 milhões de dólares (1/4 do seu valor total) que estão depositados num fundo especifico do Banco Mundial, esperando que outros países completem os recursos necessários para a execução da obra.

Alguns países desenvolvidos também tem apoiado ativamente a reconstrução do país. Os Estados Unidos, por exemplo, investiram recursos significtaivos em diversos projetos econômicos e sociais, a exemplo do polo industrial de Caracol, no norte do país.

Mas, infelizmente, nem todos os que se comprometeram com o Haiti cumpriram as suas promessas. A verdade é que a maioria dos países ricos tem ajudado muito pouco o Haiti. O volume de ajuda humanitária está diminuindo e há entidades de cooperação que começam a retirar-se do país. A comunidade internacional não pode diminuir a sua solidariedade ao Haiti.

Em 2016 deverá ocorrer a próxima eleição presidencial no país. Será o terceiro presidente eleito democraticamente desde 2004. Penso que este momento deve ser um marco no processo já iniciado de devolução ao povo haitiano da responsabilidade plena pela sua segurança. Mas isso só será possível se a comunidade internacional mantiver – e se necessário, ampliar –  os recursos financeiros e técnicos destinados à reconstrução do país e ao seu desenvolvimento econômico e social.

Devemos substituir cada vez mais a vertente da segurança pela vertente do desenvolvimento. O que implica em maior cooperação, ainda que com novas finalidades. Será que não está na hora das Nações Unidas convocarem uma nova Conferência sobre o Haiti, para discutirmos francamente o que foi feito nesses dez anos e o que fazer daqui para  a frente?

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Horizontes da Integração Latino-Americana, por Luiz Inácio Lula da Silva

Horizontes da Integração Latino-Americanapor Luiz Inácio Lula da Silva


A volta de Michelle Bachelet à presidência do Chile é um fato muito auspicioso para a América do Sul e toda a América Latina. As notáveis qualidades humanas e políticas que ela demonstrou em seu primeiro governo e, posteriormente, no comando da ONU Mulheres, a entidade das Nações Unidas para igualdade de gênero, conferiram-lhe um merecido prestígio nacional e internacional. Sua liderança – ao mesmo tempo firme e agregadora – e o seu compromisso de vida com a liberdade e a justiça social, fazem de Bachelet uma referência importante em nosso continente.

A consagradora vitória que acaba de obter revela também que o povo chileno, tal como os outros povos da região, anseia por um verdadeiro desenvolvimento, capaz de combinar o econômico e o social, a expansão das riquezas com a sua equitativa distribuição, a modernização tecnológica com a redução das desigualdades e a universalização de direitos. E reivindica, além disso, uma democracia cada vez mais participativa.

Por outro lado, a eleição de Bachelet inegavelmente reforça o processo de integração sul-americana e latino-americana, na medida em que sempre apoiou com entusiasmo as iniciativas voltadas para o desenvolvimento compartilhado e a unidade política da região. Basta lembrar a sua contribuição decisiva para a criação e consolidação da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), da qual foi a primeira presidente, e para a constituição da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Aliás, nunca houve na América Latina tantos governantes comprometidos com esse processo.

Estive no Chile durante o segundo turno das eleições justamente para debater as perspectivas da integração, participando de um seminário internacional promovido pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e o Instituto Lula.

Durante dois dias, 120 lideranças politicas, sociais e intelectuais dos nossos países fizeram um diagnóstico atualizado e debateram uma agenda concreta para o desenvolvimento e a integração regional.

Discutiu-se francamente a inserção da América Latina na economia mundial; a arquitetura político-institucional da integração; o papel das políticas sociais, especialmente no combate à pobreza; as cadeias produtivas supra-nacionais; as empresas translatinas; as conexões físicas e energéticas; a cooperação financeira e os mecanismos de investimento; os direitos humanos e laborais; a defesa do patrimônio ambiental e da diversidade cultural.

Há um grande consenso sobre a necessidade da integração, que interessa na prática a todos os nossos povos e países, independentemente da coloração ideológica dos respectivos governos. As diversas regiões do mundo estão se integrando e constituindo blocos econômicos e políticos, e não faria sentido que apenas a América Latina e o Caribe deixassem de unir-se. Nossos países viveram secularmente de costas uns para os outros e todos sabemos o quanto isso foi nefasto em termos de fragilidade geopolítica e de atraso socioeconômico. Não se trata de um movimento contra os países desenvolvidos, com os quais queremos incrementar nosso intercâmbio em todos os níveis, mas de legítima afirmação da nossa própria região. O aprofundamento da integração latino-americana – política, cultural, social, de infraestrutura, de mercados – é um caminho natural e lógico, destinado a aproveitar a nossa proximidade territorial e cultural e as nossas vantagens comparativas. Sem falar que, juntos, seguramente teremos mais força para garantir nossos direitos no âmbito global.

É opinião geral que, na última década, tivemos conquistas extraordinárias em matéria de parcerias e cooperação. Aumentou a confiança e o diálogo substantivo entre os nossos países, sem o que não se conseguiria criar a UNASUL e a CELAC. Mas as relações econômicas também se expandiram consideravelmente. O comércio, por exemplo, cresceu de modo impressionante. Em 2002, segundo a CEPAL, o fluxo total do comércio intra-regional na América do Sul era de U$33 bilhões; em 2011, já havia atingido os U$ 135 bilhões. No mesmo período, o fluxo no conjunto da América Latina passou de U$ 49 bilhões para U$ 189 bilhões. E o seu horizonte de crescimento é enorme, pois somos um mercado de 400 milhões de pessoas e até agora só exploramos uma pequena parte do nosso potencial de trocas.

O mesmo acontece com os investimentos produtivos. As empresas da região estão se internacionalizando e investindo nos países vizinhos. No caso brasileiro, tínhamos poucos investimentos industriais na América Latina. Hoje, são centenas de plantas, em mais de 20 países. E a recíproca, felizmente, é verdadeira: existe um número crescente de empresas argentinas, mexicanas, chilenas, colombianas e peruanas, entre outras, produzindo no Brasil para o mercado brasileiro.

É evidente, no entanto, que precisamos avançar muito mais. Devemos acelerar a integração, que pode ser mais profunda e abrangente. Para isso, com certeza, não bastam as visões de curto prazo. Tenho dito que necessitamos de um pensamento realmente estratégico, capaz de encarar os desafios da integração na perspectiva do futuro, dando-lhes respostas corajosas e inovadoras. Temos que ir, igualmente, além dos governos, por fundamentais que eles sejam. A integração é uma bela empreitada histórica que só se concretizará plenamente se lograrmos comprometer toda a sociedade civil dos nossos países, os sindicatos, os empresários, as universidades, as igrejas, a juventude.

É imprescindível construir uma vontade popular de integração. O principal é que todos compreendam o quanto podemos ganhar coletivamente na economia, na soberania política, na igualdade social, no desenvolvimento cultural e científico com a associação dos nossos destinos.