Crise contemporânea e as transformações na produção capitalista
Ana Elizabete Mota
Professora Convidada da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE1
Crise contemporânea e as transformações na produção capitalista
Introdução
Este texto trata da crise contemporânea e das transformações na produção
capitalista, entendidos como processos que determinam as mudanças societárias em
curso. Objetiva‐se discorrer sobre o alcance e o significado das transformações sofridas
na esfera da produção, desde os finais dos anos 70 do século XX, destacando seus
impactos no processo de acumulação capitalista, na gestão do trabalho e nos modos de
ser e viver da classe trabalhadora. Seu conteúdo está estruturado em três partes:
inicialmente, ressalta‐se a dimensão histórica das crises, qualificando‐as como
constitutivas do modo de produção capitalista e da sua dinâmica restauradora; em
seguida, destacam‐se as particularidades da crise que se iniciou no final dos anos 70,
assim como os mecanismos utilizados pelo capital para o seu enfrentamento, pautados
na reestruturação produtiva, na mundialização financeira, nos mecanismos de gestão do
trabalho e nas estratégias de construção da hegemonia do grande capital; por fim, serão
indicadas as principais implicações dessas transformações no mundo do trabalho e na
organização política dos trabalhadores, como parte ofensiva do capital para construir
uma cultura e uma sociabilidade compatíveis com os seus interesses atuais.
1 As crises na dinâmica da acumulação capitalista
Para compreender as mudanças na dinâmica do capitalismo, é necessário
reconhecer o significado histórico das crises no seu desenvolvimento. Sejam elas
qualificadas como crises econômicas1
, como o fez Marx no Livro III de O Capital e em
cuja tradição se perfilam autores como Rubin2
, Altvater3
e Mandel4
, sejam elas também
1
Na investigação de Marx, a explicação das crises está relacionada com a lei tendencial da queda das taxas de lucro, expressão
concreta das contradições do modo capitalista de produção e cuja equação pode ser sinteticamente resumida nos seguintes termos: a
produção da mais‐valia (quantidade de trabalho excedente materializado em mercadorias e extorquido no processo de trabalho) é
apenas o primeiro ato do processo produtivo. O segundo ato é a venda dessas mercadorias que contém mais‐valia. Como não são
idênticas as condições de produção da mais‐valia com as da sua realização, a possibilidade de descompassos entre esses dois
momentos cria as bases objetivas para o surgimento de crises. Para uma primeira aproximação ao tema, sugerimos a leitura de
Cultura da Crise e Seguridade Social (MOTA, 1995), especialmente a Introdução e o Capítulo I e de Economia Política: uma
introdução crítica (NETTO; BRAZ, 2006), Capítulo 7.
2
Rubin (1980, p. 31) afirma que as crises ocorrem porque “o processo de produção material, por um lado, e o sistema de relações de
produção entre as unidades econômicas [...], por outro, não estão ajustados um ao outro de antemão (grifos nossos). Eles devem concebidas como crises orgânicas, nas quais adquire destaque a dimensão política,
seguindo a análise gramsciana
2
5
, fato é que elas são inelimináveis e indicam o quanto é
instável o desenvolvimento capitalista.
Segundo Rubin, as crises são “hiatos dentro do processo de reprodução social”
(1980, p. 31). Através delas o capital se recicla, reorganizando suas estratégias de
produção e reprodução social. Pode‐se dizer que as crises econômicas são inerentes ao
desenvolvimento do capitalismo e que, diante dos esquemas de reprodução ampliada do
capital, a emergência delas é uma tendência sempre presente (MOTA, 1995, p. 37).
As crises expressam um desequilíbrio entre a produção e o consumo,
comprometendo a realização do capital, ou seja, a transformação da mais‐valia em lucro,
processo que só se realiza mediante a venda das mercadorias capitalisticamente
produzidas. Em outras palavras, quando são produzidas mais mercadorias do que a
população pode comprar, o processo de acumulação é afetado, uma vez que estoques de
mais‐valia não asseguram o fim capitalista. Para isso, não basta produzir mercadorias,
estas precisam ser transformadas em dinheiro para, rapidamente, retornarem ao
incessante processo de acumulação do capital: produção/circulação/consumo. As
ajustar‐se em cada etapa, em cada uma das transações em que se divide formalmente a vida econômica” (A Teoria Marxista do
Valor. São Paulo: Brasiliense, 1980). Essa colocação, devidamente atualizada (o texto é dos anos 1920) expõe com clareza o
imperativo da centralização e concentração do capital que se expressam atualmente nas fusões patrimoniais, na organização da
produção, como é o caso do estoque zero de mercadorias porque a produção passa a depender da demanda instalada, ou seja, da sua
venda antecipada.
3
Em dois ensaios publicados no v. 8 da Coleção História do Marxismo organizada por Hobsbawm, o cientista político alemão Elmar
Altvater enfoca as polêmicas em torno do tema das crises, destacando as suas dimensões econômicas e políticas e argumentando
sobre a impossibilidade de operar tematizações sobre as crises, exclusivamente, com base na teoria econômica (ALTVATER, E. A
crise de 1929 e o debate sobre a teoria da crise. In: E. J. Hobsbawm (Org.) História do marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989,
v. 8, p. 79‐133).
4
Em A Crise do Capital, Mandel faz uma incursão histórica sobre as crises capitalistas, destacando suas características e seu caráter
cíclico, argumentando pela necessidade de distinguir os fenômenos da crise, suas causas mais profundas e sua função no quadro da
lógica imanente do modo de produção capitalista (MANDEL, E. A crise do capital: os fatos e sua interpretação marxista. São
Paulo/Campinas: Ensaio/Unicamp, 1990. Cap. XXV).
5
Gramsci adota a concepção marxiana das crises como contradições inerentes ao modo de produção capitalista; todavia, é no
tratamento da relação entre crise econômica e crise política que reside a originalidade do seu pensamento. Para ele, as crises
conômicas criam um terreno favorável à difusão de determinadas maneiras de pensar, de formular e resolver as questões que
nvolvem todo o curso da vida estatal (GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000. v. 2 e 3).
e
eexpressões mais emblemáticas das crises são as reduções de operações comerciais,
acúmulo de mercadorias estocadas, redução ou paralisação da produção, falências,
queda de preços e salários, crescimento desmesurado do desemprego e
empobrecimento generalizado dos trabalhadores. Suas causas podem ser diversas, tais
como a anarquia da produção, a concorrência intercapitalista, com a consequente queda
tendencial da taxa de lucro, o subconsumo de massa, ou, ainda, podem ser potenciadas
por algum incidente econômico ou geopolítico.
3
Longe de serem naturais, as crises revelam as contradições do modo de produção
capitalista, entre elas, a sua contradição fundamental, a produção socializada e a
apropriação privada da riqueza, também reproduzindo e criando outras contradições
como as existentes entre: 1) a racionalidade da produção em cada empresa e a
irracionalidade do conjunto da produção e dos mercados capitalistas; 2) a maximização
dos lucros de cada corporação empresarial e suas refrações na concorrência,
ocasionando a tendência à queda da taxa de lucros; 3) o crescimento da produção de
mercadorias e a estagnação ou redução da capacidade de consumo.
Expondo sobre o tema, Netto e Braz (2006, p. 162) afirmam que “as crises são
funcionais ao modo de produção capitalista, constituindo‐se num mecanismo que
determina a restauração das condições de acumulação, sempre em níveis mais
complexos e instáveis, assegurando, assim, a sua continuidade”.
Isso significa que as crises não ocasionam, mecanicamente, um colapso do
capitalismo. Elas deflagram um período histórico de acirramento das contradições
fundamentais do modo capitalista de produção que afetam sobremaneira o ambiente
político e as relações de força entre as classes. Por ocasião das crises, deflagra‐se um
processo no qual mudanças significativas ocorrem, sejam elas no interior da ordem,
sejam em direção a um processo revolucionário, dependendo das condições objetivas e
das forças sociais em confronto. A análise de Gramsci sobre o enfrentamento da crise de
1929, exposta no célebre texto Americanismo e Fordismo, é central para entender o
lugar da luta de classes no enfrentamento das crises, donde a estratégia revoluçãopassiva, como mecanismo para obtenção do consenso de classes em face das mudanças
realizadas nos processos de produção, na ação estatal e nos aparelhos privados de
hegemonia.
4
A dinâmica crise‐restauração incide nas relações sociais e implica o
redirecionamento da intervenção do Estado. Este, por sua vez, redefine seus
Segundo Braga (2003, p. 217), em conjunturas de crise,
a principal tarefa das classes dominantes passa a ser a de erigir
contratendências à queda da taxa de lucro. Nesse processo devem
intensificar os métodos de trabalho, modificar as formas de vida
operária e, principalmente, engendrar as bases políticas e sociais
de uma iniciativa que permita às classes dominantes tornar seus
interesses particulares em universais, isto é, válidos para todas as
classes.
Trata‐se de um meio de atualização da hegemonia das classes dominantes que
atinge substantivamente a dinâmica da reprodução social. Do ponto de vista objetivo,
este movimento materializa‐se na criação de novas formas de produção de mercadorias,
mediante a racionalização do trabalho vivo pelo uso da ciência e tecnologia, regido pela
implementação de novos métodos de gestão do trabalho que permite às firmas o
aumento da produtividade e a redução dos custos de produção.
Vale salientar que os impactos das crises apresentam‐se diferenciados para os
trabalhadores e os capitalistas. Para os capitalistas, trata‐se do seu poder ameaçado;
para os trabalhadores, da submissão intensificada. Estes últimos são frontalmente
penalizados na sua materialidade e subjetividade posto que afetados pelas condições do
mercado de trabalho, com o aumento do desemprego, as perdas salariais, o crescimento
do exército industrial de reserva e o enfraquecimento das suas lutas e capacidade
organizativa. mecanismos legais e institucionais de regulação da produção material e da gestão da
força de trabalho, instituindo renovadas formas de intervenção relativas aos sistemas de
proteção social, à legislação trabalhista e sindical, além daquelas diretamente vinculadas
à política econômica. Nesse contexto, se redefinem as relações entre Estado, sociedade e
mercado, determinando medidas de ajustes econômicos e de reformas e contra‐
reformas sociais, que continuem garantindo a acumulação capitalista, em conformidade
com as particularidades de cada formação social.
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2 As particularidades da crise contemporânea e da restauração capitalista
Os anos que se seguiram ao período de reconstrução do segundo pós‐guerra,
estendendo‐se até os anos 70, nos países centrais, foram marcados por uma fase de
expansão do capitalismo, caracterizada por altas taxas de crescimento econômico,
ampliação de empregos e salários e uma forte intervenção do Estado. Este período foi
definido como fordistakeynesiano (HARVEY, 1995), em função da articulação orgânica
entre ação estatal e gestão da produção, vindo a configurar uma onda longa expansiva,
nos termos de Mandel (1990). Suas características foram uma intensa centralização,
concentração e expansão de capitais, cujo desenvolvimento das forças produtivas,
marcado por avanços tecnológicos, permitiu o aumento da produtividade do trabalho e
da produção de mercadorias, mediante a internacionalização da produção e a
redefinição da divisão internacional do trabalho (MANDEL, 1992). Para tanto, foram
decisivos o amparo de fatores políticos, tais como:
‐ A intervenção do Estado que, no lastro das políticas keynesianas, criou
mecanismos estatais voltados para a reprodução ampliada dos trabalhadores,
socializando com o patronato parte dos custos de reprodução da força de trabalho.
‐ A construção do pacto fordista‐keynesiano (BIHR,1998), marcado pelas
mobilizações sindicais e partidárias dos trabalhadores que, em torno de reivindicações
sociais legítimas, pressionaram a incorporação, pelo capital, do atendimento de parte das suas necessidades sociais, operando mudanças nas legislações trabalhistas e nas
medidas de proteção social.
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esses serviços públicos tinham objetivos bem claros: a) responder
as reivindicações dos fortes movimentos operários que se
insurgiam na época; b) assumir os custos de reprodução da força
de trabalho antes pagos exclusivamente com os salários dos
próprios trabalhadores; c) oferecer alternativas de fundos de
reserva públicos disponíveis para serem investidos em
empreendimentos privados dos capitalistas (principalmente na
Essa conjunção de fatores foi responsável pela constituição do Welfare State, que se
tornou um dos principais pilares de sustentação institucional daquela fase expansiva do
capitalismo, ao integrar à sua dinâmica econômica parte das demandas operárias por
melhores condições de vida e trabalho.
A incorporação dessas demandas se fez através da alocação de fundos públicos na
constituição de políticas econômicas e sociais, o que favoreceu a ampliação do consumo
por parte dos trabalhadores: ao tempo em que desmercantilizava o atendimento de
algumas das necessidades sociais através de salários indiretos, via políticas sociais
públicas, a ação estatal permitia a liberação de salários reais e o consequente aumento
da demanda por consumo de mercadorias, criando as condições para o surgimento da
produção e do consumo em massa, típicos do regime fordista de produção.
Estava posta a equação subjacente ao chamado pacto fordista‐keynesiano, ou seja,
a incorporação das demandas trabalhistas, aumento da produção e do consumo operário
e estabelecimento de uma relação negociada entre Estado, capital e trabalho, como
expressão concreta de ideologias que defendiam a possibilidade de compatibilizar
capitalismo, bem‐estar e democracia.
Segundo Maranhão (2006), produção e compra de bens de capital que impulsionaram várias
inovações tecnológicas); d) liberar parte do salário dos
trabalhadores para serem gastos com bens duráveis,
principalmente automóveis, que nesta época se transformam na
mola de expansão da acumulação do capital; e) e, finalmente, mas
não menos importante, oferecer barreiras ideológicas à expansão
do socialismo do Leste que, nesta época, se coloca como grande
meaça à sociedade capitalista.
7
A plena incorporação das economias periféricas ao processo de reprodução
ampliada do capital ocorreu nos anos 70 do século XX, quando os países então chamados
subdesenvolvidos transformam‐se em campo de absorção de investimentos produtivos.
A seus Estados nacionais coube a continuidade – embora com novas características – do
papel de indutores do desenvolvimento econômico, propiciando uma base produtiva
a
Esses propósitos, alcançados em alguns países europeus, naquela fase de
desenvolvimento, permitiram alguns ganhos materiais para aqueles trabalhadores.
Todavia, enquanto os países centrais garantiam a reprodução do crescimento econômico
com desenvolvimento social, a periferia mundial assistia a defesa do
desenvolvimentismo como meio de integração desses países à ordem econômica
mundial. Concomitantemente crescia a economia capitalista, assegurando a sua
virtuosidade entre os anos 40 e 70 do século XX.
Diferente da trajetória que determinou o Welfare, o desenvolvimentismo no Brasil
foi resultado de um processo de modernização conservadora que consolidou a
industrialização e o crescimento econômico, mas que não redistribuiu os resultados
dessa expansão com a maioria da população trabalhadora. Merece, portanto, ser
ressaltada a inexistência da experiência welfareana no Brasil apesar da criação de
algumas políticas de proteção social, instituídas a partir dos anos 40, mas somente
redefinidas nos anos 80, quando se instituem as bases formais e legais do que poderia
ser um Estado de Bem‐Estar Social, na Constituição de 1988 (MOTA, 2006). integrada às necessidades dos oligopólios internacionais, graças ao apelo ao crédito
externo para o financiamento daquela base e da sua expansão.
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Qualificado por muitos como um período em que o trabalho perdeu a sua
centralidade, fato é que os anos que se seguiram à década de 80 são palco de um
processo de restauração capitalista, assentada num duplo movimento: 1) a redefinição
das bases da economia‐mundo através da reestruturação produtiva e das mudanças no
Essa situação reverte‐se na década seguinte, quando se inicia a crise da dívida
externa, obrigando tais países, sistematicamente, a exportar capitais para o pagamento
dos empréstimos recebidos. Não por acaso, em tal período, o mundo capitalista revela os
sintomas de uma crise de acumulação, obrigando os países desenvolvidos a redefinirem
suas estratégias de acumulação, donde o surgimento de novas estratégias de
subordinação da periferia ao centro.
É, nesse marco, que se dá a integração do Brasil à ordem econômica mundial, nos
anos iniciais da década de 90, sob os imperativos do capital financeiro e do
neoliberalismo, responsáveis pela redefinição das estratégias de acumulação e pela
reforma do Estado. Na prática, isso se traduz em medidas de ajuste econômico e retração
das políticas públicas de proteção social, numa conjuntura de crescimento da pobreza,
do desemprego e do enfraquecimento do movimento sindical, neutralizando, em grande
medida, os avanços e conquistas sociais alcançadas pelas classes trabalhadoras nos anos
80.
No âmbito do sistema capitalista e da sua economia‐mundo, instala‐se muito mais
do que uma crise econômica: estão postas as condições de uma crise orgânica, marcada
pela perda dos referenciais erigidos sob o paradigma do fordismo, do keynesianismo, do
Welfare State e das grandes estruturas sindicais e partidárias. Se, a tais condições se
soma o exaurimento do “socialismo real”, vê‐se como foi possível afetar a combatividade
do movimento operário, imprimindo, a partir de então, um caráter muito mais defensivo
do que ofensivo às suas lutas sociais. mundo do trabalho; 2) a ofensiva ideopolítica necessária à construção da hegemonia do
grande capital, evidenciada na emergência de um novo imperialismo e de uma nova fase
do capitalismo, marcada pela acumulação com predomínio rentista (HARVEY, 2004).
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Estes movimentos podem ser identificados historicamente em medidas que
indicam: a) a reestruturação dos capitais, com as fusões patrimoniais, a íntima relação
entre o capital industrial e financeiro, além da formação de oligopólios globais via
processos de concentração e centralização do capital; b) as transformações no mundo do
trabalho, que tanto apresentam mudanças na divisão internacional do trabalho como
redefinem a organização do trabalho coletivo, reduzindo a fronteira entre os processos
de “subsunção real e formal” do trabalho ao capital e compondo a nova morfologia do
trabalho, segundo a expressão de Antunes (2006); c) a reconfiguração do aparato estatal
e das ideologias e práticas que imprimem novos contornos à sociabilidade capitalista,
redefinindo mecanismos ideopolíticos necessários à formação de novos e mais eficientes
consensos hegemônicos.
Orquestrada pela ofensiva neoliberal, a ação sociorreguladora do Estado se retrai,
pulverizando os meios de atendimento às necessidades sociais dos trabalhadores entre
organizações privadas mercantis e não‐mercantis, limitando sua responsabilidade social
à segurança pública, à fiscalidade e ao atendimento, através da assistência social, àqueles
absolutamente impossibilitados de vender sua força de trabalho. A classe trabalhadora é
também atingida pelos processos de privatização, inicialmente através da venda de
empresas produtivas estatais, seguindo‐se uma ampla ofensiva mercantil na área dos
serviços sociais e de infra‐estrutura, tais como os de saúde, previdência, educação,
saneamento, habitação etc., amparados pela liberalização da economia, sob a égide da
liberdade de mercado e retração da intervenção do Estado.
Esse projeto de restauração capitalista, materializado no novo imperialismo, teve
no “Consenso de Washington” sua base doutrinária e política, operacionalizado pelo
Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e pela Organização Mundial do Comércio, transformado nas principais alavancas institucionais da integração e do ajuste
das economias periféricas às necessidades do capitalismo internacional.
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No novo imperialismo, a hegemonia vem sendo exercida pelos Estados Unidos,
através do uso de estratégias que combinam coerção e consenso, pretendendo uma
espécie de governo mundial que, ao sitiar a ideologia dos seus opositores, afirma a sua
(ideologia) como universal. Do ponto de vista macroeconômico, em oposição à
acumulação expandida, que marcou boa parte do século XX, o que está em processo de
consolidação é a acumulação por espoliação sob o comando dos países ricos (HARVEY,
2004; DUMENIL; PETRAS, 2002; LEVY, 2004).
A marca da acumulação por espoliação tem sido a abertura de mercados em todo o
mundo, através das pressões exercidas pelo Fundo Monetário Internacional, Banco
Mundial e Organização Mundial do Comércio que, ao estimularem a aplicação de
excedentes ociosos de capital – que não encontram empreendimentos lucrativos em
seus países de origem –, investem nos países periféricos, de onde jorram remessas de
lucros. Este processo torna‐se campo de investimento transnacional, desde o
patenteamento de pesquisas genéticas, passando pela mercantilização da natureza,
através do direito de poluir, até a privatização de bens públicos, com a transformação de
serviços sociais em negócios, implicando degradação do meio ambiente, ampla
especulação imobiliária, como vem acontecendo com o litoral do Nordeste, e criação de
nichos produtivos locais, entre outros.
No âmbito das relações e dos processos de trabalho, ocorrem mudanças
substantivas – seja através da reedição de antigas formas de exploração, como o salário
por peça, o trabalho em domicílio etc., transformando, entre outros, os espaços
domésticos não mercantis em espaços produtivos por força das terceirizações; seja
instituindo novos processos de trabalho que externalizam e desterritorializam parte do
ciclo produtivo, instaurando novas formas de cooperação, onde se incluem e se ajustam,
num mesmo processo de trabalho, atividades envolvendo altas tecnologias,
superespecialização e precarização. Trata‐se de construir um novo trabalho/trabalhador coletivo à base de uma nova
divisão internacional e sociotécnica do trabalho, que mantém a parte nobre
(planejamento, projetos, pesquisa em C & T, designers etc.) da produção nos países
centrais, enquanto transfere para os países periféricos o trabalho sujo e precário,
contando com uma mão‐de‐obra barata, a heterogeneidade de regimes de trabalho, a
dispersão espacial e a desproteção dos riscos do trabalho.
Ao contrário do que ocorria no século XX, quando predominavam as concentrações
operárias numa mesma fábrica, cidade, região ou país e se expandiam os sistemas de
seguridade social, o capitalismo contemporâneo prima por desterritorializar o trabalho
e as mercadorias e por precarizar as condições e relações de trabalho, afetando
sobremaneira as condições de vida dos trabalhadores e a sua capacidade de organização
e resi tência. s
No Brasil, o processo de reestruturação produtiva começa ainda durante a década
de 1980 com a informatização produtiva, os programas de qualidade total e a
implantação de métodos de gestão participativa. Segundo Antunes (2006, p. 16),
inicialmente ela é marcada pela redução de postos de trabalho e pelo aumento da
produtividade que dependeram da reorganização da produção, da intensificação da
jornada de trabalho, do surgimento dos CCQs e dos sistemas de produção justintime e
Kanban.
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Nos anos 1990, ela se intensifica sob o influxo da acumulação flexível e do modelo
japonês – o toyotismo – quando a produtividade é potenciada pela implantação de
formas diversas de subcontratação e terceirização da força de trabalho, além da
descentralização das unidades de produção, cujas fábricas são transferidas para regiões
sem tradição industrial. De certa forma, essas mudanças somente se tornam possíveis
pela ofensividade do capital para construir outra subjetividade do trabalho, implantando
mecanismos participativos e instituindo, entre outros, programas de participação nos lucros ou, ainda, transformando parte dos trabalhadores em acionistas minoritários das
empresas reestruturadas.
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Ao contrário dos trabalhadores, cujos coletivos são fragmentados, o capital, através
das fusões patrimoniais transacionais, aumenta a sua capacidade de concentração e
centralização, o que concorre tanto para um maior controle de riscos dos seus
empreendimentos, como para o aumento da sua capacidade de coordenar a produção
mundial. Para tanto, as corporações inauguram novas formas de gerenciamento e
controle, contando com novas tecnologias de processamento de informações, o que lhes
permite conciliar a centralização do capital com a descentralização das operações
financeiras e dos processos de trabalho.
Mesmo comportando formas diferenciadas, onde convivem setores tradicionais e
modernos, relações de trabalho estáveis e precárias e novos processos produtivos que
mesclam práticas inspiradas no toyotismo com práticas fordistas e até processos que
remontam à produção simples de mercadoria, essa combinação de padrões produtivos,
segundo Antunes (2006, p. 19), oferece como resultante um aumento da
superexploração do trabalho, traço constitutivo e marcante do capitalismo brasileiro.
A produção em massa de produtos padronizados, que marcou o regime fordista,
cede lugar à produção seletiva, preferencialmente de produtos de luxo, consumida por
não muito mais que 30% da população mundial, composta pelas classes médias e
proprietárias. Torna‐se inútil para a produção uma parte da população destituída dos
meios de produção e da condição de vendedores de força de trabalho. Essa população
excedente, não por acaso, se transforma no foco das políticas denominadas de
transferência de renda ou de renda mínima e ingressa, mesmo que residualmente, nos
mercados consumidores internos. De igual modo, com o intuito de criar uma economia mundial baseada na
intensificação dos regimes de extração da mais‐valia e de barateamento da força de
trabalho, o atual padrão de acumulação capitalista tem desenvolvido mecanismos de
desvalorização da força de trabalho, que visam incrementar superlucros (MARANHÃO,
2006). Trata‐se de um movimento aparentemente contraditório, mas que encerra uma
enorme funcionalidade, qual seja: o mesmo processo que determina a expulsão de
trabalhadores da produção intensiva de mercadorias também ocasiona a inserção
precarizada dessa força de trabalho em novos processos combinados de trabalho, cujos
sujeitos são conceituados de trabalhadores informais, temporários ou por conta própria.
Aqui, os exemplos mais emblemáticos são o da produção de mercadorias à base da
reciclagem de materiais, cujos vendedores de matéria‐prima, os denominados
“catadores de lixo”, integram a cadeia produtiva da reciclagem; os trabalhadores e
pequenos produtores rurais que fornecem matéria‐prima para a produção do biodiesel e
as mulheres que costuram por facção para a indústria de confecção, cujo trabalho é pago
por peça.
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Esses trabalhadores e trabalhadoras, em tese, integram a superpopulação flutuante
e estagnada a que se referiu Marx ao tratar sobre Lei Geral da Acumulação (MARX), cuja
função econômica é empurrar os salários dos trabalhadores ativos para baixo. Contudo,
na atualidade, essa superpopulação é refuncionalizada, transformando‐se em peça chave
da acumulação por espoliação. Nessa dinâmica, os países periféricos têm se
transformado em imensos reservatórios de força de trabalho barata e precária para as
megacorporações transnacionais.
Neste processo, deve‐se destacar a financeirização da economia, na base da qual se
encontra a orgânica vinculação entre as grandes corporações produtivas transacionais e
as instituições financeiras que passam a comandar a acumulação, contando para isso
com a desregulamentação operada pelo Estado através da liberalização dos mercados.
Embora se apresente como uma forma “autônoma” de produção da riqueza, o que é
impossível no modo capitalista de produção, baseado na produção da mais‐valia, o capital financeiro, de forma inaudita, além de potenciar o fetichismo da mercadoria, cria
outro fetiche: o de que dinheiro se transforma em capital prescindido da base material
riginada na e pela produção capitalista, através da exploração do trabalho pelo capital.
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Nesse quadro, uma das maiores perdas para os trabalhadores foi o
comprometimento do seu potencial político‐organizativo. Este comprometimento se
deveu a diversos fatores, entre eles, as novas práticas de gestão da força de trabalho,
cujas expressões mais visíveis foram a “cultura” participativa inaugurada com os CCQs e
as modalidades de externalização de parte dos processos de trabalho através das
o
3 Implicações na organização política dos trabalhadores
É inegável que as transformações operadas no interior da produção capitalista,
desde os finais dos anos 1970, operaram mudanças radicais e substantivas nos
processos e nas condições de trabalho de milhares de trabalhadores em todo o mundo.
Inicialmente atingiram as economias centrais e posteriormente se espraiaram nos países
periféricos, onde se inclui o Brasil, produzindo um cenário no qual convivem a
acumulação e concentração da riqueza com a ampliação do desemprego, a precarização
do trabalho e o agravamento da pobreza.
A ofensiva político‐social e ideológica para assegurar a reprodução deste processo,
como já referido, passa pela chamada reforma do Estado e pela redefinição de iniciativas
que devem ser formadoras de cultura e sociabilidade, imprescindíveis à gestação de uma
reforma intelectual e moral (MOTA, 2000) conduzida pela burguesia para estabelecer
novos parâmetros na relação entre o capital, o trabalho e destes com o Estado.
Amparada pela naturalização da mercantilização da vida, essa reforma social e
moral busca, entre outros objetivos, transformar o cidadão sujeito de direitos num
cidadão‐consumidor; o trabalhador num empreendedor; o desempregado num cliente
da assistência social; e a classe trabalhadora em sócia dos grandes negócios (MOTA,
2006). terceirizações, da compra de serviços, do trabalho em domicílio, por tarefa, etc.
Enquanto o participacionismo alimentava a passivização do trabalhador nos seus locais
de trabalho, os mecanismos de externalização imprimiam novos meios de controle e
dominação sob o argumento da autonomia do trabalhador por conta própria e da
ideologia da empregabilidade. Outro fator preponderante foi a desterritorialização das
firmas que, ao dispersar as concentrações operárias, esgarçaram as condições
necessárias à organização dos trabalhadores nos seus locais de trabalho e nos sindicatos
por categoria profissional.
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A estas práticas acrescenta‐se a progressiva expansão do exército industrial de
reserva, cuja formação seja consubstanciada por desempregados temporários ou
permanentes engrossa as fileiras da força de trabalho disponível e disposta a assumir
qualquer tipo de emprego, o que favorece o rebaixamento salarial e possibilidades
inima náveis de precarização. gi
Todas estas situações afetam a composição da classe trabalhadora, inclusive ao
gerar impactos diferenciados nos jovens, nas mulheres e trabalhadores qualificados e
não qualificados, resultando numa grande diversidade de questões e interesses que
rebatem nas motivações e prioridades das suas lutas. O ambiente político deste processo
é representado pela desestruturação do mercado de trabalho, tanto pela flexibilização da
produção quanto pela da gestão das relações produtivas, introduzindo novas formas de
contrato de trabalho e criando um mosaico de situações jurídicas e profissionais que
tornam menos visíveis os laços de classe existentes entre os trabalhadores, além de
fragilizar o núcleo do trabalho estável e organizado (SANTOS, 2006, p. 450).
Contudo, apesar dessa desmontagem da prática organizativa dos trabalhadores, é
possível identificar a existência de movimentos de resistência e de defesa de direitos
conquistados que, mesmo recorrentemente ameaçados e desqualificados pelas classes
dominantes e pela burocracia sindical, como está acontecendo no Brasil, vêm obrigando
o governo a fazer negociações e a produzir recuos no legislativo. Os resultados políticos da ofensividade das classes dominantes têm sido a
fragmentação dos interesses classistas dos trabalhadores e a proliferação de
movimentos sociais “extraeconômicos” e “transclassistas”. Ao mesmo tempo em que a
burguesia consegue articular e agregar os interesses dos capitais de todas as partes do
mundo, fragmenta as identidades e necessidades daqueles que vivem do seu trabalho. As
consequências dessa fragmentação na composição e ação política das classes
trabalhadoras resultam num processo de passivização da suas lutas.
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Como a história não acabou, é importante enfatizar que o que está em jogo é a
capacidade das classes subalternas desmontarem o projeto e as práticas das classes
Em certa medida, as lutas sociais – apesar de presentes em todo o cenário mundial
(HOUTART; POLET, 2003; LEHER; SETÚBAL, 2005; PETRAS, 2000) – perdem força com
a fragilização do movimento operário, que, ao adquirir um caráter de resistência, tem
baixa incidência nas questões afetas às relações e processos de trabalho.
O andamento dessas práticas demonstra a imperiosa necessidade de uma
articulação global que conduza o movimento sindical a adotar estratégias políticas
globais através de uma articulação orgânica com os movimentos sociais e as lutas
espontâneas das classes subalternas contra a lógica do capital.
Malgrado a condição defensiva da classe trabalhadora, presencia‐se uma ampliação
das lutas sociais mundiais, consoantes com a ofensiva financeira mundializada, de que
são exemplos o Fórum Mundial das Alternativas realizado no marco da reunião de Davos
em 1999 e iniciativas em redes como a Ação para Tributação das Transações Financeiras
em Apoio aos Cidadãos (ATTAC); o movimento em defesa da cobrança da Taxa Tobin,
que propõe taxar em 1% as transações especulativas nos mercados de divisas; a
Coordenação Contra os Clones do Acordo Multilateral sobre o Investimento (CCCAMI);
além do projeto Alternativa Bolivariana para América Latina e Caribe (ALBA), em
contraposição ao projeto comercial da ALCA, abraçada por setores da esquerda
Latinoamericana e Caribenha. dominantes ao tempo em que constroem o seu projeto – radicalmente anticapitalista e
em defesa de uma sociedade para além do capital.
17Referências
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