Paulo Batista Gomes

Paulo Batista Gomes

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

4 de novembro de 1969 é uma viagem por um túnel escuro.

Relembrar aquele 4 de novembro de 1969 é uma viagem por um túnel escuro. Um desses pesadelos em que a gente vê o escuro no fim de toda a luz.

O impacto da morte de Marighella foi muito grande. Apontava algo que já se vinha sentindo, uma mudança na maré da repressão contra todas as formas de resistência à ditadura militar. A maré até ali fora crescente, mas relativamente “mansa”, perto do que ainda viria. A partir dali virou a “maré alta e furiosa” que foram alguns dos piores momentos dos “anos de chumbo”. Não me refiro à natureza dos atos da repressão. Desde o começo o regime de 64 caracterizou-se pela violência, a tortura, o assassinato, o seqüestro da liberdade. Mas a partir de 1969 se intensifica a percepção/sensação da absoluta impunidade de seus agentes.

Entre a repressão ao Congresso de Ibiúna, em 1968, e o começo do Governo de Ernesto Geisel, em 1974, quebrou-se a espinha de uma geração: a minha. Depois a gente remendou, como pode. Mas ficou a cicatriz do remendo, indelével.

Para começo de conversa, a gente não sabia o que tinha acontecido de fato. A versão oficial, difundida pela imprensa, dizia que Marighella e seu esquema de segurança de 13 homens, liderados pelo “Gaúcho”, uma outra figura lendária da guerrilha brasileira, tinham sido surpreendidos na altura do n° 800 da Alameda Casa Branca, em São Paulo. (V. a edição de 12 de novembro de 1969 da revista Veja, “Estratégia para matar o terror”). Marighella teria morrido na fuzilaria que se seguiu. E os “13 homens de sua guarda” teriam simplesmente evaporado na noite paulistana.

Na verdade, ainda hoje a gente não sabe direito tudo o que aconteceu naquela noite. Mas se sabe algumas coisas. Marighella foi sozinho ao encontro dos freis dominicanos que o aguardavam e que, debaixo de tortura, tinham confirmado o “ponto”, como se dizia na época. Houve uma fuzilaria sim, mas só por parte dos cerca de 40 policiais que o aguardavam. Na ânsia, devem ter atirado uns nos outros. Marighella nem sacou da arma. Morreu na rua. Foi atingida na testa a policial Estela Borges Morato, do DOPS, que fingia namorar com o delegado Sérgio Paranhos Fleury, ou com outro policial, dentro de um carro. Ela morreria alguns dias depois, vítima do ferimento. Hoje é nome de rua e de escola em São Paulo. Morreu também Friedrich Adolf Rohman, um civil que passava pelo local, e que nada tinha a ver com a história. E o delegado, também do DOPS, Rubens Tucunduva, ficou ferido, mas sobreviveu.

Depois de morto, o corpo de Marighella foi jogado dentro do carro onde estavam os dois freis que o aguardavam, provavelmente para criar a impressão de correria e busca de proteção. A versão oficial, como em outros casos, tentava sempre criar um clima de “faroeste” em que, é claro, a cavalaria eram “as forças da lei” – na verdade o braço armado, torturador e assassino, do regime ditatorial que se abatera sobre o Brasil a partir de 1964.

Naquela noite, jogavam no Estádio do Pacaembu Santos e Corinthians (este ganhou, por 4 x 1). No intervalo, o locutor anunciou: “Foi morto pela polícia o líder terrorista Carlos Marighella”. Como diante de um resultado anunciado sobre jogo que se passasse em outro estádio, a multidão aplaudiu. Essa notícia, também divulgada na imprensa da época, era tão chocante quanto a notícia da morte do comandante guerrilheiro.

Já se sabia de tudo, na época, dos seqüestros praticados pela repressão, das torturas, dos assassinatos, coisas cuja ocorrência só aumentaria nos próximos anos, até pelo menos o chamado “Massacre da Lapa”, contra a direção do PC do B, nos fins de 1976. Já se sabia da hediondez da figura do delegado Sérgio Paranhos Fleury, comandante da operação contra Marighella (e presente à chacina da Lapa, em 76), de sua ascensão na Polícia através do Esquadrão da Morte e de seu “chamado” para o DOPS, a fim de comandar essa ala na repressão à resistência contra a ditadura em São Paulo (e em outros lugares também, como no caso do também Massacre da Chácara São Bento, em Pernambuco, em 1973). E o que mais amargurava quem sabia de tudo isso, era a descrença dos demais, uma descrença do tipo “não quero ver, não quero ouvir”. “Falar?”. Nem pensar.

Penso (hoje) que foi essa sensação de isolamento que estraçalhou almas, tanto quanto os fatos em si, a repressão, as prisões, as torturas. Na tradição da Guerra de Tróia há a figura de Cassandra, a filha do rei troiano Príamo e de Hécuba, em cujas profecias ninguém acreditava. Mas nós não fazíamos profecias: só lidávamos com relatos do passado recente e do presente que ninguém mais queria ouvir. Se ouviam, não acreditavam. Se acreditavam, disfarçavam, dissimulavam, diziam que os cegos éramos nós.

Por outro lado, reli hoje o então proibido “Manual do Guerrilheiro Urbano”, uma plaqueta que fez época no Brasil e no mundo, tendo influenciado grupos clandestinos de luta armada pelo menos na Europa, na África e no Oriente Médio.

O livro que, de longe foi o mais importante escrito por Marighella, define o que ou quem é o guerrilheiro urbano, como ele se diferencia do criminoso comum, embora suas ações possam ser semelhantes, qual é seu treinamento especial, as qualidades que deve prezar e manter, etc. Não posso ocultar de mim mesmo nem de ninguém mais o gosto amargo que me vem à boca e à alma ao reler essas páginas e lembrar de quantos – alguns que conheci pessoalmente – morreram ou ficaram mutilados no corpo e na alma, em nome do que ali se escreve e descreve. O livro todo tem por eixo a crença numa superioridade moral do guerrilheiro urbano sobre tudo e sobre todos. É essa superioridade moral que o leva a combater em terreno adverso – a cidade, dominada pelo inimigo – ao invés de procurar o campo, onde poderia teoricamente se ocultar melhor.

Diz o livro que uma das principais características do guerrilheiro urbano é o conhecimento do terreno, que deve ser superior ao do inimigo. Talvez aí esteja uma das razões contundentes do contundente fracasso que foi a guerrilha no Brasil. Na verdade muitos poucos de nós, os resistentes à ditadura (nunca fui um guerrilheiro urbano nem de outro espaço), tinham algum conhecimento profundo desse espaço (ou terreno) chamado Brasil, América Latina. Não me refiro a conhecimento de trilhas, ruas, esquinas. Estou me referindo ao espaço social e cultural brasileiro, que estava num processo rápido de mudanças vertiginosas, com a classe média ampliando seu reino e o reinado de seus valores, com o povão tendo meios para acorrer mais e mais aos estádios, para gritar e incensar o que viesse anunciado pelos alto-falantes. Desconhecíamos o significado disso. O inimigo também desconhecia, porque anos mais tarde seria surpreendido pelo ímpeto do movimento das Diretas-Já, justo quando se achava no auge de seu alcance histórico, a ponto de permitir a chamada “distensão” e depois a “abertura”.

O fruto desses desconhecimentos mútuos, múltiplos e multipolares é que hoje os militantes socialistas e comunistas daqueles tempos são saudados genericamente não por essa condição, mas sim por serem – e há justiça nisso – heróis ou mártires da democracia. Tanto é assim que neste 2009, 40 anos depois de sua morte, Carlos Marighella vai receber o título de cidadão da cidade em que foi assassinado. Tais paradoxos da história mostram que, afinal, no fim daquela escuridão do túnel em que se viaja no tempo para diante e para trás, havia, de fato,alguma luz, nem que fosse apenas a de um clarão, uma chama de vela, um piscar de olhos, aqueles olhos que ficaram para trás, mas cuja presença não podemos esquecer.

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