Paulo Batista Gomes

Paulo Batista Gomes

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

OLHA AI O NOSSO SAUDOSO CAMARADA ENSINANDO O PIG A NÃO INVENTAR VERDADES!

Milton Santos fala sobre o racismo brasileiro



O conceituado geógrafo, em entrevista concedida à Folha de São Paulo em 16 de junho de 1995, desmistifica a "democracia racial" com bastante objetividade, apesar de se obrigar a responder a uma série de perguntas capciosas. Na ocasião, o jornal promovia uma extensa pesquisa sobre relações étnicas no país.

Folha- O senhor poderia comentar números que mostram o racismo de negros contra negros?

Milton Santos- Eu não estou seguro que a folha esteja tratando corretamente a questão. O nível de imprecisão com que a palavra "preconceito" foi utilizada inutiliza muitos dos resultados.


Folha- Por exemplo?

Santos- Toda pesquisa. O que é admitir preconceito? Falta essa definição.

Folha- Qual o problema com a palavra "preconceito"?

Santos- Essa palavra não quer dizer nada e quer dizer tudo. Portanto não se presta a ser usada numa pergunta.

Folha- O senhor conhece algum termo melhor?

Santos- Não. Esse teria que ser definido melhor. A maior parte das questões colocadas servem a uma estratégia de marketing, não a um trabalho social. Essa é a minha crítica central. Admito que o jornal se interesse por marketing.

Folha- Constatar o racismo é marketing?

Santos- Não. Marketing é fazer perguntas apenas sobre o discurso e não sobre o comportamento. Estou exagerando, porque há perguntas sobre comportamento. Já estou pensando na próxima, que eu sei que a Folha vai fazer.

Folha- Quando o Datafolha pergunta se o entrevistado concorda com a frase "Negro bom é negro de alma branca"...

Santos- Eu não vejo mais interesse nesse tipo de frase. Isso vai ajudar a resolver a questão? Temos que ultrapassar essa fase.

Folha- E ir em que direção?

Santos- Acho que o resultado dessa pesquisa é criar outros preconceitos. Piores do que os anteriores, porque aparentemente se tornam científicos. Eu, portanto, primeiro contesto a idéia de pesquisa para testar esse tipo de questão.





Folha- O senhor não acha que essa pesquisa ajuda a tornar público algo que é subterrâneo?

Santos- Mas quase todas as perguntas repetem os preconceitos. Os que idealizaram a pesquisa não tiveram imaginação para inventar outras coisas a partir da realidade. Não houve esforço inovador. É uma pesquisa cara, dá para notar, só que vai reforçar preconceitos. E isso não serve para discutir as questões sociais.

Folha- No momento em que se contata, através da pesquisa, que a maioria dos brancos brasileiros manifesta algum preconceito em relação aos negros...

Santos- Mas vocês não trabalharam isso. O trabalho pára aí, nessa constatação. Essa pesquisa é um esforço importante, mas largamente insuficiente. É uma pesquisa fundada nos preconceitos. Para saber que brasileiro é racista não precisava fazer essa pesquisa.

Folha- Mas nunca havia sido quantificado esse racismo.

Santos- Não era necessário.

Folha- O senhor conhece algum estudo que mostre isso?

Santos- Pesquisa não é estudo. Há dezenas de teses que mostram isso. Quantificar é até pior. Porque, como não é estudo, ele prestigia o resultado que não tem obrigatoriamente validade. Faltou esse cuidado na pesquisa.

Folha- Qual a importância das comemorações dos 300 anos de Zumbi?

Santos- O centenário da Abolição, em 1988, deu lugar a comemorações, festas, a imprensa se ocupou do assunto e depois nada. Eu tenho medo que esses 300 anos de Zumbi dêem na mesma coisa. Não dá mais para ficar só na constatação do racismo.

Folha- O que o senhor acha que é preciso fazer para sair daí?

Santos- Haveria que se encontrar um projeto no qual a cidadania limitada do negro fosse objeto de medidas objetivas. Por exemplo: como é que eu faço para que a USP tenha mais estudantes negros?

Folha- O senhor defende o chamado sistema de cotas?

Santos- Essa pergunta gera um bloqueio do debate. Porque você só tem duas formas de responder: sim ou não.



Folha- Qual seria a pergunta correta?

Santos- O que eu devo fazer para que o negro entre e permaneça na universidade? A resposta seria: com políticas compensatórias. O mundo inteiro tem políticas compensatórias de conquista social. Não me refiro aos negros.

Folha- O senhor não está falando de reparações?

Santos- Há duas coisas diferentes. Uma é a quantificação da reparação, que eu não vou discutir. Mas a reparação é necessária. Na medida em que uma comunidade é secularmente posta à margem, a nação tem que se ocupar dela. Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um risco para a unidade nacional.

Folha- O senhor poderia dar exemplos de medidas reparadoras concretas?

Santos- As grandes universidades brasileiras são a cada ano mais elitistas, não do ponto de vista intelectual, mas do ponto de vista sócio-econômico. É inaceitável haver uma educação para um tipo de pessoas e outra para outro tipo de pessoas. Isso se aplica a toda sociedade brasileira, particularmente aos negros. Com a saúde também. Para ficar doente e ser bem tratado no Brasil, você precisa ser ministro! No mundo inteiro você tem políticas compensatórias. Se são os idosos que têm dificuldades, é importante tratar deles logo. Ou quando o problema está no subúrbio, na periferia, como ocorre hoje em quase toda a Europa... As políticas compensatórias servem para manter a coesão nacional.

Folha- O senhor já viveu na França, nos EUA, no Canadá, na Tanzânia. Qual é a especificidade do racismo brasileiro?

Santos- Aqui é natural os negros serem tratados de forma subalterna. Você não tem como reclamar. Se você protesta, é visto como alguém que está perturbando o "clima agradável" que possa existir nesse ou naquele lugar.



Folha- Essa ideologia de três séculos é responsável pelo racismo de negros contra negros?

Santos- Essa pergunta é igualmente preconceituosa. Há uma lista de perguntas preconceituosas nessa pesquisa. O preconceito do branco com o negro tem um efeito socail, econômico, político, cultural. O preconceito do negro em relação ao branco, se é que isso existe, tem efeito nenhum.

Folha- Gostaria de saber a sua opinião sobre o preconceito de negros contra negros.


Santos- A ideologia é de origem social, não individual. Vivendo dentro de uma sociedade bárbara, eu sou objeto dessa sociedade. Mas não usaria a palavra racismo. Isso não é racismo. Não é isso.

Folha- É o quê?

Santos- Sei que não é fácil. Com freqüência há mais preconceito do que discriminação.

Folha- Para usar uma expressão utilizada pelos próprios militantes negros, isso seria reflexo de uma baixa auto-estima dos negros?

Santos- Descobri, recentemente, em contato com a comunidade negra, que essa baixa auto-estima existe. No Brasil, desgraçadamente, a ascensão social do negro o condena a dar as costas ao passado.

Folha- O que mais, nessa aproximação que o senhor viveu com a comunidade negra, o senhor viu ou percebeu?

Santos- Há um cansaço, uma consciência de não pertencer completamente à sociedade brasileira... Prefiro fazer compras em Nova York do que em São Paulo.

Folha- O senhor é maltratado?

Santos- Olhado com desconfiança. Parece que isso faz parte do ethos (caráter peculiar a determinado povo). A grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum.

Folha- Quando mais o senhor não é tratado como homem comum?

Santos- Em aviões. Os comissários só falam comigo em inglês, o que é insuportável. Há duas semanas, num avião da Varig em Paris, reclamei em português sobre o meu lugar. Ele respondeu em inglês. Eu disse: "Não fale em inglês". Ele respondeu: "O senhor me perdoe, mas ainda não sei falar francês". Isso é preconceito? Isso é discriminação?



Folha- O que é?

Santos- Ele não sabia que estava me chateando. Mas me chateei. Como eu posso pedir que as pessoas sejam amáveis com negros em shopping centers? Não tenho como pedir. Por enquanto não tem solução.

Folha- O senhor acha que deveria haver alguma iniciativa do tipo Ministério do Negro?

Santos- Não. Isso seria criar um gueto. Mas creio que a questão do negro não pode mais ficar no Ministério da Cultura. Não é uma questão de cultura. Tem que ser do Ministério da Justiça. A solução é a via política.

Folha- O senhor acha que deveria haver aulas de, digamos, cidadania nas escolas, que procurassem combater o preconceito?

Santos- Tenho medo dessas coisas. O que deveria ser feito é uma reescritura da história que é ensinada nos colégios. As políticas compensatórias não podem ser discriminatórias, sob o risco de criar guetos.

Folha- O senhor acha que o fato de o presidente Fernando Henrique Cardoso ser um sociólogo pode ajudar nessa discussão?

Santos- O fato de ele ser acadêmico pode permitir que haja mais colóquios, seminários, congressos. Talvez, também, ele tome algumas atitudes importantes. Até agora, não há sinal... Mas é preciso dar um crédito de confiança.

Folha- Diversos negros bem-sucedidos que entrevistei tendem a considerar que a chave do sucesso é o esforço pessoal. O que o senhor acha?

Santos- Acho um enorme equívoco. Quando dizem isso, fazem um enorme mal à comunidade negra. Fica parecendo que para ficar milionário basta fazer esforço e que a questão pode ser tratada na base do voluntarismo. Neste final do século 20, onde a referência tem um enorme papel pedagógico, é evidente que certas formas de esforço são importantes e devem ser mostradas. Mas é importante mostrar também o mecanismo social que leva a isso.

(FOLHA DE SÃO PAULO; DATAFOLHA. Racismo cordial: a mais completa análise sobre preconceito de cor no Brasil. São Paulo: Ática, 1998, pp. 58 a 65)


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